quarta-feira, 4 de julho de 2012

Por mais uma noite


Foi uma daquelas segundas-feiras de maio em que o outono contrariou a sua própria natureza: geralmente, um clima ameno e seco, cuja inclinação do sol forma belas paisagens, em tons contrastantes, ideais para ótimas fotografias. Em vez disso, naquele dia 14 de maio, a estação emoldurou o céu de São Paulo com nuvens ameaçadoras, chuviscos e um friozinho de pé de serra, de provocar nos habitantes uma saudadezinha intensa dos seus cobertores.
Que veranico, que nada! Talvez invernico, disse um colega de trabalho ao lado do bule de café, em frente à mesa de Rosa Maria. Ela apenas esboçou um sorriso e nem respondeu, tão absorvida que estava em repassar aos amigos um dos seus últimos emails do dia: uma piada sobre a masculinidade dos são-paulinos, sua receita principal para rebater as gozações dos adversários em relação à falta de títulos do seu clube do coração na Libertadores da América.
Corintiana fanática, não desperdiçaria a chance de tripudiar sobre os rivais, ainda mais agora em que o time estava indo bem no torneio sul-americano, sem falar do tão esperado estádio, erguido com celeridade no coração de Itaquera. O estoque de piadas deles está acabando, logo ficam sem munição, pensou. E prosseguiu em suas traquinagens virtuais no final daquela manhã cinzenta.
Feito isso, foi almoçar. Ali pelo centro mesmo, nas imediações da Rua Xavier de Toledo. Com o tempo ruim, preferiu voltar logo ao seu trabalho de assistente social e completar mais uma volta no carretel dos anos a fio em que estava servindo ao governo federal e aos seus assistidos.
A tarde custou a passar, mas o resultado do atendimento foi proveitoso, pouca coisa ficou para o dia seguinte. Em dado momento relembrou a frase do colega e creditou ao invernico a disposição para dar conta de todos os processos em sua mesa. Encerrado o expediente, tomou o rumo de casa, um apartamento no Jabaquara, e, no mesmo pique, mergulhou nas tarefas rotineiras de uma moradora solitária, mas com tantos afazeres domésticos.
Lá pelas tantas, adormeceu. E para bem além dessas tantas, o coração parou de bater. O corpo rijo foi encontrado por uma amiga na manhã seguinte, dia ainda nublado, em continuidade à conspiração do outono. Os lençóis, sem dobras de desespero. Objetos rigorosamente em seus lugares.  Sem alarmes estridentes de rádios-relógios. Sem chaleiras que apitam quando a água ferve. Foi bem assim, sono tranquilo. Parecia encantada, como queria Guimarães Rosa.

Mas Rosa Maria continuou sonhando.

Como todos devem saber, os sonhos não são lineares. Desrespeitam os tiques-taques do relógio. É a supremacia da desordem cronológica sobre o desenrolar dos fatos. Rosa tanto poderia estar tirando a sua primeira carteira de trabalho como realizando uma reunião de rotina com os amparados pela Casa Brenda Lee, entidade de apoio a portadores de Aids, que chegou a presidir.
Atendendo vítimas de acidente de trabalho, encaminhando aposentadorias, tomando chope numa churrascaria da rua Augusta ou simplesmente contando piadas (de são-paulino) em meio a um encontro de assistentes sociais em Brasília.
Pois ela ali, de braços cruzados sobre o peito, inerte, agora sonha com o futebol. Ao captar o clima da cidade, se vê no alto da arquibancada de um estádio inacabado, que vai crescendo, tijolo por tijolo, num desenho mágico. Palco de uma alegria fugaz. E sopra muito, sopra forte, a ponto de desviar a bola rasteira, chutada por um atacante adversário, que tinha como endereço certo o canto esquerdo do goleiro corintiano. Ou arremessar a bola do rival de encontro à trave. Ou deslocar um centroavante do outro time na hora de aproveitar um rebote. De sopro em sopro, ao menos em seu sonho, o Corinthians vai.

E Rosa Maria continuará sonhando. Ainda por hoje. Talvez, por mais esta noite. Quando enfim, descansará feliz.