Foi
uma daquelas segundas-feiras de maio em que o outono contrariou a sua própria
natureza: geralmente, um clima ameno e seco, cuja inclinação do sol forma belas paisagens, em
tons contrastantes, ideais para ótimas fotografias. Em vez disso, naquele dia 14 de maio, a estação emoldurou o céu de São Paulo com nuvens ameaçadoras, chuviscos e um
friozinho de pé de serra, de provocar nos habitantes uma saudadezinha intensa
dos seus cobertores.
Que veranico, que nada!
Talvez invernico,
disse um colega de trabalho ao lado do bule de café, em frente à mesa de Rosa
Maria. Ela apenas esboçou um sorriso e nem respondeu, tão absorvida que estava
em repassar aos amigos um dos seus últimos emails do dia: uma piada sobre a
masculinidade dos são-paulinos, sua receita principal para rebater as gozações
dos adversários em relação à falta de títulos do seu clube do coração na
Libertadores da América.
Corintiana
fanática, não desperdiçaria a chance de tripudiar sobre os rivais, ainda mais
agora em que o time estava indo bem no torneio sul-americano, sem falar do tão esperado
estádio, erguido com celeridade no coração de Itaquera. O estoque de piadas deles está acabando, logo ficam sem munição,
pensou. E prosseguiu em suas traquinagens virtuais no final daquela manhã cinzenta.
Feito
isso, foi almoçar. Ali pelo centro mesmo, nas imediações da Rua Xavier de
Toledo. Com o tempo ruim, preferiu voltar logo ao seu trabalho de assistente
social e completar mais uma volta no carretel dos anos a fio em que estava
servindo ao governo federal e aos seus assistidos.
A
tarde custou a passar, mas o resultado do atendimento foi proveitoso, pouca
coisa ficou para o dia seguinte. Em dado momento relembrou a frase do colega e creditou
ao invernico a disposição para dar
conta de todos os processos em sua mesa. Encerrado o expediente, tomou o rumo
de casa, um apartamento no Jabaquara, e, no mesmo pique, mergulhou nas tarefas
rotineiras de uma moradora solitária, mas com tantos afazeres domésticos.
Lá
pelas tantas, adormeceu. E para bem além dessas tantas, o coração parou de
bater. O corpo rijo foi encontrado por uma amiga na manhã seguinte, dia ainda
nublado, em continuidade à conspiração do outono. Os lençóis, sem dobras de
desespero. Objetos rigorosamente em seus lugares. Sem alarmes estridentes de rádios-relógios.
Sem chaleiras que apitam quando a água ferve. Foi bem assim, sono tranquilo.
Parecia encantada, como queria Guimarães Rosa.
Mas
Rosa Maria continuou sonhando.
Como
todos devem saber, os sonhos não são lineares. Desrespeitam os tiques-taques do
relógio. É a supremacia da desordem cronológica sobre o desenrolar dos fatos.
Rosa tanto poderia estar tirando a sua primeira carteira de trabalho como
realizando uma reunião de rotina com os amparados pela Casa Brenda Lee,
entidade de apoio a portadores de Aids, que chegou a presidir.
Atendendo
vítimas de acidente de trabalho, encaminhando aposentadorias, tomando chope
numa churrascaria da rua Augusta ou simplesmente contando piadas (de são-paulino)
em meio a um encontro de assistentes sociais em Brasília.
Pois
ela ali, de braços cruzados sobre o peito, inerte, agora sonha com o futebol. Ao
captar o clima da cidade, se vê no alto da arquibancada de um estádio inacabado,
que vai crescendo, tijolo por tijolo, num desenho mágico. Palco de uma alegria
fugaz. E sopra muito, sopra forte, a ponto de desviar a bola rasteira, chutada
por um atacante adversário, que tinha como endereço certo o canto esquerdo do
goleiro corintiano. Ou arremessar a bola do rival de encontro à trave. Ou
deslocar um centroavante do outro time na hora de aproveitar um rebote. De
sopro em sopro, ao menos em seu sonho, o Corinthians vai.
E
Rosa Maria continuará sonhando. Ainda por hoje. Talvez, por mais esta noite.
Quando enfim, descansará feliz.