sábado, 19 de março de 2011

A imprensa "linfomaníaca"

Quando a imprensa brasileira tem seus lampejos de criatividade, segundas intenções vêm por aí. Parciais do jeito que são, quando nossos jornalões tentam fugir da insipidez reinante no mercado, tratam de aproveitar o "gancho" e mandar uma criticazinha aos seus desafetos. Umas pedrinhas no caminho, só para tentar atrasar o passo dos adversários e ganhar algum tempo com isso.
O exemplo de golpismo jornalístico do dia vem do Jornal da Tarde, que nos anos 70 inovou no jornalismo com chamadas criativas e diagramação moderna, base para muitas publicações brasileiras nas décadas seguintes. Atualmente, o jornal tenta repetir, sem sucesso, seus momentos de glória. Mas os tempos são outros. Falta-lhe público. Falta-lhe imparcialidade. E sobram mau-gosto e ranço ideológico em certas reportagens.
A notícia de hoje, 19 de março de 2011, diz que centenas de paulistas com vários subtipos de câncer linfático estão sem receber o medicamento Rituximabe, desde que o fornecimento passou a ser de responsabilidade do Ministério da Saúde, em setembro de 2010. Antes disso, a Secretaria de Estadual da Saúde era a responsável pela distribuição.
Segundo o jornal, apenas pacientes com determinado tipo de câncer linfático estão recebendo remédios. E qual o tipo de doença? O mesmo que afetou a atual presidenta da República. Ou "o linfoma da Dilma", como afirmou a publicação no cabeçalho da notícia. E quando alguém imagina que o título escolhido (Só "linfoma da Dilma" obtém remédio) serviria apenas para atrair o leitor para o corpo da matéria, vem a confirmação dos reais interesses do jornal, ao ligar a falta do Rituximabe ao pretenso atendimento prioritário apenas aos portadores da "doença presidencial".
Creia, a notícia do Jornal da Tarde seguiu esta linha de pensamento. A reportagem cita Merula Steagall, presidente da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia. Ela questiona: "Agora vamos ter de esperar outros governantes terem (sic) outros tipos de doença para que sejam incluídos? E os outros pacientes, quando vão poder ser contemplados?"
Pasme, leitor. O que se depreende da notícia é que Dilma quer proteger apenas os seus parceiros de infortúnio, ou alguém do Ministério quer agradá-la. Qual é a lógica de tudo isso, se o Ministério enviou nota reiterando que quando os médicos julgarem necessário, é possível que os hospitais comprem o remédio citado, mesmo para os casos de linfomas não especificados, conforme texto publicado na mesma página?
De acordo com a reportagem, o JT ouviu vários oncologistas do País. Todos afirmam não ser possível obter o medicamento por meio do procedimento descrito pelo Ministério. Se isso for verídico, o órgão federal merece as críticas feitas pelos setor. Mas nenhum deles confirma que houve algum  "privilégio" à doença de Dilma.
O raciocínio da reportagem se apoia apenas na declaração de Merula, que, como já chegou a afirmar à revista PEGN, "em 2002, foi estimulada pelo ex-ministro José Serra a fundar a Associação que preside, para incluir em sua luta os pacientes portadores de outras doenças do sangue". Pelo jeito, também deve ter sido estimulada pelo ex-candidato a proferir ilações desse tipo, tamanha irresponsabilidade para alguém que lida com doenças de alto risco.
A lógica dessa imprensa é aquela que conhecemos desde que o PT assumiu a Presidência da República, em 2003. A guerra ideológica, sem trégua, praticada em cada trincheira - digo, em cada página de jornal ou revista. Seja no caderno político ou nas palavras cruzadas.
O Jornal da Tarde inventou o linfoma da Dilma (será que a expressão pega?). Dou-me o direito de chamá-lo de exemplo de "imprensa linfomaníaca", aquela que não poupa seus adversários em momento algum,  nem os acometidos de doenças graves em alguma fase da vida, só para tentar atingir seus objetivos nem sempre edificantes.


Leia abaixo a notícia do JT


Só ‘linfoma de Dilma’ obtém remédio

19 de março de 2011 - 2h53
Fonte: Jornal da Tarde
Categoria: Saúde
MARIANA LENHARO

Apenas pacientes que sofrem do mesmo tipo de câncer linfático que em 2009 afetou a presidente Dilma Rousseff (chamado difuso de grandes células B, o mais agressivo) estão recebendo um medicamento de alto culto que, segundo os médicos, aumenta a sobrevida e a chance de cura dos pacientes. Centenas de paulistas com outros subtipos da doença deixaram de receber o Rituximabe em setembro, conforme revelou o JT na segunda-feira.
A falta do remédio se deu quando seu fornecimento passou da Secretaria de Estado da Saúde para o Ministério por meio da Portaria n° 420, da Secretaria da Atenção à Saúde. “A portaria só complicou a situação, porque o acesso ficou restrito. Agora, vamos ter de esperar outros governantes terem outros tipos da doença para que sejam incluídos? E os outros pacientes, quando vão poder ter o direito de ser contemplados? ”, questiona a presidente da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia, Merula Steagall.
Na quinta-feira Merula esteve em Brasília para entregar ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha, um ofício que expõe as dificuldades que os pacientes enfrentam para ter acesso ao Rituximabe. O oncologista José Segalla, do Hospital Amaral Carvalho, em Jaú, referência em oncologia no Estado, também questiona a restrição. “Limitar o remédio a um único tipo de linfoma só pode ser entendido como uma ação dolosa contra o cidadão”, diz. Procurada pelo JT, a assessoria da presidente Dilma Rousseff não comentou a situação.
Em janeiro, após quatro meses de espera pelo remédio, o aposentado Luiz Carlos Mozela morreu, deixando três filhos, a viúva e seu primeiro neto, que havia acabado de nascer. “Quem sabe ele não poderia continuar com a gente por mais 10, 15 anos”, diz a mulher do paciente, Ana Maria Mosela (leia ao lado). O Rituximabe pode aumentar a taxa de cura dos pacientes com linfoma em até 20%, segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Enaldo Melo de Lima. “É uma das maiores inovações tecnológicas da área.”
Segalla concorda. “É uma droga que, usada com o tratamento convencional, aumenta a chance de cura da doença. Não é panaceia ou medicamento cosmético”, diz. A médica Márcia Higashi, professora de Oncologia e Hematologia da Faculdade de Medicina do ABC, reforça que vários estudos comprovam o aumento da sobrevida dos pacientes tratados com o Rituximabe.
Em 2010, representantes da SBOC, da Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC) e da Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH) entregaram ao Ministério da Saúde um documento sobre a importância da liberação do remédio para pacientes com outros tipos de linfoma – além daquele que acometeu Dilma. “Recebemos uma negativa, os pacientes estão sem o remédio”, diz Lima. À reportagem, o Ministério negou essa falta de acesso.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O futebol e as variantes do verbo “ser”

Diálogo recente na Vila Belmiro:
- Se fosse o Pelé, ele me daria autógrafo - reclama o torcedor santista, diante da negativa de Paulo Ganso em lhe atender o pedido.
- Pelé “já era” – decretou um dos assessores do jogador, pouco antes de ir embora.
E não é só o Pelé, caro leitor. Vamos admitir: Rivelino “já era”, Tostão “já era”, Sócrates “já era”, Zico, Maradona, enfim, todo o futebol praticado até meados dos anos 80...”já era”.
O que “já é” são esses monstrengos que ocupam atualmente os nossos gramados, com cabeças de bagre, pernas de pau e mãos de alface (no caso dos goleiros).
Quando aparece alguém, assim, acima da média, é tratado como semideus pela mídia, por cartolas, empresários, patrocinadores e por muitos torcedores, geralmente mais jovens, que não têm parâmetro sobre o que é ser craque de bola.
Testemunha ocular de boa parte do futebol brasileiro jogado dos anos 60 em diante, digo que a maioria dos nossos atletas da atualidade teriam que pagar para ver treino dos velhos ídolos. E sairiam admirados com a quantidade de chápeus, bicicletas, rolinhos, elásticos e toques de calcanhar que aconteciam em campo.
Naquela época, a bola encharcava em campo molhado, não havia camisas dry-fit, às vezes um prego entrava para dentro da chuteira e não havia cartão amarelo para proteger os craques das entradas violentas. E mesmo assim, em doze anos, o Brasil levou três copas do mundo, sendo que, em duas finais (58 e 70), venceu por goleada. Coincidência, não é mesmo? Tudo isso aconteceu na "Era Pelé" (ou Era Garrincha, Era Rivelino, Era Vavá, Era Gérson e por aí vai).
Ainda acompanho o futebol na atualidade, pois, apesar da mediocridade geral, o que mais vale é a camisa que os atletas vestem, em defesa de clubes de tradições muitas vezes centenárias.
Fica como consolo o fato de que algumas sombras sempre perseguirão os jovens ídolos. Quando Neymar fizer um golaço retumbante, daqueles de entrar com bola e tudo depois de fintar o goleiro, sempre haverá quem diga que foi um gol de Pelé; quando Ganso der um precioso passe de calcanhar, sempre haverá alguém para falar que foi uma jogada "à la Sócrates"; ou, se usar o drible do “elástico”, certamente será comparado a Rivelino.
Talvez, nesse momento, não fiquem claras à nova safra de jogadores de nível de seleção as variantes do verbo “ser”, tantas são as suas ocupações afora jogar futebol.  Mas o dia em que cair a ficha, se cair, e virarem apenas verbetes na Wikipédia, se virarem, aí poderemos dizer que aquela oportunidade de entrar para o rol dos grandes esportistas de todos os tempos...“já foi”.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Triste coincidência

Quinta-feira, dia 10, por volta das 23 horas, comecei a assistir o mais recente filme de Clint Eastwood, Além da Vida. Não fui até o final. Fixei-me por mais tempo na sequência inicial, primorosa (e assombrosa) representação do tsunami que varreu o litoral da Tailândia e Indonésia, anos atrás, e chave para a história de uma jornalista que quase morre afogada e passa a encarar a vida de outra forma. Revi as cenas várias vezes.
Os efeitos especiais contribuiram para entender a agressividade daquele tsunami que vitimou mais de cem mil pessoas. No filme, há uma riqueza de detalhes: o mar que recua para formar a onda gigante, a invasão da areia pela água, a força do mar na destruição total do vilarejo...
Poucas horas depois, madrugada adentro, li na internet a notícia do terremoto no Japão e de sua principal consequência: um tsunami havia arrasado a costa japonesa. Desta vez, o fenômeno foi amplamente registrado por várias câmeras de TV. Sem efeitos especiais. Sem truques no estúdio.
No filme de Clint, numa tomada aérea, as pessoas parecem formigas, tragadas impiedosamente pelo mar. Nas imagens do Japão, casas, carros, conteineres, barcos e até uma usina atômica - produtos desenvolvidos pela genialidade humana e altamente valorizados como mercadorias - são arrastados ao gosto da maré extraordinária como se fossem brinquedos. Corpos não aparecem, mas a contagem dos mortos chega aos milhares.
Talvez não seja o momento para filosofar sobre a condição humana, sua eterna aspiração à imortalidade e o espírito capitalista presente na ocupação de todos os espaços que a terra oferece. Mas que, aos olhos da natureza, não passamos de formigas, disso precisamos nos convencer.

Cena de Além da Vida. Aos olhos da natureza, somos formigas...



quinta-feira, 3 de março de 2011

Os culpados

- Vamos lá, vamos lá. O que você tem a dizer sobre esses alagamentos, enchentes, deslizamentos de terra e congestionamentos em São Paulo nos últimos meses?
- Tudo bem doutor. Admito. Exagerei um pouco na dose. Mas foi o que a natureza combinou comigo: fazer crescer as plantinhas, encher os reservatórios de água...
- Por aqui só tem cimento, não tá vendo? Até as margens do Tietê são de concreto, pô!  Por sua causa, nosso governador teve de abrir as comportas de algumas represas. Inundou cidades. Perdemos alguns peixes. Água demais atrapalha. Não precisamos de chuvas como você! Outros lugares, talvez...onde tem o Bolsa Família...
- Não fiz nada sozinho, doutor. Aliás, sou apenas o meio, não o fim. Sou a bala no tambor, não a arma. Sou apenas a bola do futebol, prevalece a vontade do jogador. Que tal o esperma de uma poderosa ejaculação? E, de mais a mais, apenas sigo ordens, como Vossa Excelência. Já as nuvens...
- Arrá, estamos chegando mais perto dos culpados! Dê os nomes. Dê os nomes.
- Elas se formam do nada. O céu está azulzinho, mas repentinamente, as manchas cinzentas começam a encobrir a cidade. Ficam alvoroçadas, carregam muita carga elétrica e me projetam em direção ao solo. Às vezes eu, às vezes Granizo, um primo distante. Cumulus Nimbus. Stratus Cumulus. Nimbus Stratus. Parecem nomes de algum ditador do Oriente Médio ou de Imperador Romano. Sinistro. Mas são nuvens passageiras, que com o vento se vão...
- Escrivão, mande entrar esse tal de “coronel” Nimbus....ou serão capitão Nemo? Hushuaiashuia*. Peça para secar os pés no tapete antes de entrar na sala. E convoque para depor o Hermes Aquino. Acho que ele esconde alguma informação sobre a ação das nuvens.
...
- Então, o que tem a dizer? Qual é o seu grau de envolvimento com as catástrofes paulistas? Falo dos fenômenos naturais. Não dos governantes...
- Bem. Confesso que as chuvas são geradas em meu interior. Nessa época do ano rola uma química estranha, tá ligado? Outro dia passei por um médico e ele falou que eu era produto do ambiente em que fui criado, mano. Citou uma tal de Zona de Convergência do Atlântico Sul. Ela começa na Amazônia e termina no oceano, brou.
- Ah, eu já desconfiava, sentia cheiro de lenocínio no ar. De repente estamos tratando de uma rede de tráfico internacional de mulheres. E de drogas. A chuva intensa acelera o crescimento de “certas plantinhas” alucinógenas. A colheita e o processamento da erva coincidem com o carnaval. E vira uma suruba sem tamanho. Tá tudo batendo.
- Doutor...não esqueça de El Niño, La Niña...eles também provocam tempestades. Tanto aqui, quanto na Indonésia.
- Datilografe, datilografe, escrivão. Pe-do-fi-li-a. Estou chocado. Afe. O crime organizado não tem limites. Mande investigar já os sites de previsão do tempo. Peça aos nossos agentes para decodificar a linguagem cifrada de “certos” metereologistas. Prenda quem arquivou no computador e compartilhou fotos e imagens do satélite. Fale para o senador Azeredo acelerar a tramitação do projeto de controle da Internet. Ah, não esqueça de chamar a Rede Globo para uma entrevista exclusiva.  A pauta: delegado desvenda os crimes relacionados às enchentes. E aponta os culpados. Quanto a vocês, estão presos para averiguação. Leve-os para o tanque.
- Relaxe, doutor. Somos inocentes. São as águas de março fechando o verão...
- Geeeente! Mas isso já é formação de quadrilha! Quero todos os nomes! Escrivão, registra aí, já temos mais um: onde eu encontro esse tal de Antonio Carlos Jobim?

*Nota do editor: Hushuaiashuia é sinônimo de risos nas redes sociais. Não sei porquê. Ninguém ri assim.