sábado, 24 de março de 2012

"Víamos nossos pés", por Veríssimo

Víamos nossos pés

O outono é a única estação civilizada. A primavera é um descontrole glandular da Natureza. O inverno é o preço que a gente paga para ter o outono, e por isso está perdoado. O verão é uma indignidade.
Eu deveria ser um par de garras serrilhadas escapulindo pelo chão de mares silenciosos, ou pelo menos um falso inglês como o Eliot. Clássicos ao pé do fogo, um vago cachorro e cherry seco contra o catarro. Um gentleman não deve suar, meu caro. As frutas têm suco, não um inglês. Nas colônias, os nativos suavam por nós, e... É sempre assim. Quando chega o verão começo a me imaginar em Londres, estocando meus tintos para o inverno. Mas é claro que não aguentaria duas semanas como inglês sem começar a maldizer a umidade e a sonhar com o sol.
Mas não sou uma pessoa tropical. Minha terra preferida é o outono em qualquer lugar. No outono as coisas se abrandam e absorvem a luz em vez de refleti-la. É como se a Natureza etc., etc. (O verão não é uma boa estação para literatura descritiva. Me peça o resto da frase no outono.)
Sempre digo que a praia seria um lugar ótimo se não fossem a areia, o sol e a água fria. É só uma frase. Gosto do mar. O diabo é que a gente sempre tem na cabeça um banho de mar perfeito que nunca se repete. O meu aconteceu em Torres, Rio Grande do Sul, em algum ano da década de 50. Sim, crianças, em 50 já existiam Torres, o Oceano Atlântico e este cronista, todos bem mais jovens. O mar de Torres estava verde como nunca mais esteve. Via-se o fundo? Via-se o fundo.
Víamos os nossos pés, embora a água estivesse pelo nosso pescoço, e como eram jovens os nossos pés. Havia algas no mar? Iodo, mães-d'água, siris, dejetos, náufragos, sereias? Não, a água estava límpida como nunca mais esteve. Os únicos objetos estranhos no mar eram os nossos pés, e como isso faz tempo. Até que horas ficamos na água? Alguns anoiteceram dentro d’água e estariam lá até agora se não tivessem que voltar para a cidade, se formar, fazer carreira, casar, envelhecer, essas coisas.
Como o cronista explica sua aversão ao verão depois de tais lembranças? É que eu não gostava do verão. Gostava de ser mais moço.



Luís Fernando Veríssimo

Publicada no jornal "Estado de São Paulo" em 28/02/2009
Parte integrante do livro "Em algum lugar do Paraíso"