quinta-feira, 16 de junho de 2011

Os jalde-negros

Em plena era da lógica de mercado no mundo da bola, adentra ao gramado o futebol pragmático e globalizado. Veste uniforme impecável, de alta tecnologia, repleto de logomarcas. Pela linha lateral, na zona menos iluminada do campo de jogo, sai direto para o vestiário o futebol pitoresco, folclórico, que beira o romantismo. Aquele das camisas desbotadas, com um pequeno anúncio da Quitanda do Olegário costurado nas costas. Entram em campo os “cases” e saem “os causos”.
Porém, a principal vantagem de se morar num país de dimensões continentais com ampla diversidade cultural é que há sempre um “porém”. É o que salva o pouco que nos resta de história e o que alimenta as nossas parcas tradições. Felizmente, algo escapa dos tentáculos financeiros que controlam a nossa vida. A fugir do pla-ne-ja-men-to. E os raros “causos” precisam ser contados com urgência, antes que caiam no esquecimento.
E vamos de mala e cuia ao Rio Grande do Sul. Mais precisamente, ao Pampa Gaúcho. Município de Bagé, apelidado de Rainha da Fronteira por ser quase divisa com o Uruguai.
Posso dizer que conheço bem este lugar. Visito-o quase que ininterruptamente há 22 anos, mesmo tempo que eu tenho de casado com uma bageense. Cidade bem estruturada, administrada pelo PT há dez anos, oferece ampla gama de serviços.
Um dos destaques é a sua vida noturna. Bares, restaurantes, baladas e danceterias não têm hora para fechar. Se lá pela tantas bater a fome, sempre haverá um ambulante na esquina a oferecer graúdos lanches por preços módicos – cobrados em pilas, naturalmente, apelido do Real por aquelas bandas.
A base da economia é a pecuária, o beneficiamento de arroz e a agricultura em geral. Nos últimos anos, os investimentos em uvas viníferas cresceram muito na região, cuja combinação de solo e clima é ideal para a produção de vinhos finos.
Do futebol local, conheço mais a fundo o Grêmio Esportivo Bagé, por influência do meu cunhado, Paulo, que não tira a camisa do clube nem para dormir. O seu único título estadual foi conquistado em 1925. De lá saiu Tupanzinho, atacante que brilhou no Palmeiras nos anos 60. O uniforme principal é formado por listras verticais amarelas e pretas, semelhante ao do Peñarol, do Uruguai. Ambos são chamados de jalde-negros (jalde: amarelo forte, da cor do ouro).
Mas nem tente afirmar que o Grêmio Bagé inspirou-se no clube uruguaio. Arrumará briga, na certa. Provavelmente, o amarelo dos co-irmãos é homenagem ao sol que brilha mais tempo no céu naquelas bandas orientais. Mas que as camisas são praticamente idênticas, não há dúvida.
O arquirrival do Bagé é o Guarany, alvirrubro, que também teve o seu ápice no futebol gaúcho décadas atrás. O maior nome da sua história é Saulzinho, artilheiro do Vasco também nos anos 60. Nas nossas visitas à cidade, sua casa é parada obrigatória, pois ele tem parentesco com Marta, minha esposa.
Bem, feitas as devidas apresentações, vamos ao “causo”, recentíssimo, mais fresco do que fofoca no twitter, como diria certo analista que deu fama à cidade.
Bem, para os dois clubes de Bagé, 2011 iniciou assim: ambos na 2ª divisão do Campeonato Gaúcho, com possibilidades de acesso para a divisão principal, ao lado dos grandes.
O Guarany, mais conservador, procurou jogadores no próprio Estado. Já o Grêmio Bagé, num lance de modernidade, trouxe, por meio de investidores, um grupo de jogadores dos clubes menores do Rio de Janeiro.
Todos sabem que gaúcho se adapta facilmente em qualquer lugar do País. Mas o contrário é uma incerteza. Não são todos os brasileiros que se dão bem no Rio Grande do Sul. Principalmente nos pampas. No verão, o calor é de rachar. No inverno, o frio é de trincar. Na paisagem, predomina a planície. Não há morros. Muito menos bailes fanques.
E o futebol jogado no interior do Estado é mais disputado do que palco de trio elétrico em parada gay. Resultado: bem antes dos garotos cariocas se adaptarem ao meio-ambiente e esquentarem os tamborins, o Grêmio Bagé entrou em queda livre na tábua de classificação. No 1º turno, perdeu cinco partidas seguidas – uma delas para o rival em pleno estádio Pedra Moura – e empatou uma. Na lanterna do torneio, o sinal amarelo brilhava, anunciando a ampla chance de descenso.
O Guarany estava ligeiramente melhor: quatro derrotas e duas vitórias. Não figurava entre os últimos, tampouco entre os primeiros. Tanto poderia se classificar para a 2ª fase quanto ser rebaixado, dependendo do desempenho nas próximas partidas.
No 2º turno, a troca de técnico não melhorou o desempenho do jalde-negro. Após mais duas derrotas, seguidas, o Grêmio Bagé foi jogar a sua sorte em Rio Grande, contra o São Paulo. Era vencer ou vencer. Perdeu por 2X1. Rebaixado e cabisbaixo, amargou outra derrota na sequência, jogando em casa.
Já o Guarany permanecia em situação crítica, aquela de “ir ou rachar”. Em quatro jogos do 2º turno, perdera uma e empatara as outras três. A próxima partida, decisiva, seria em casa, no estádio Estrela Dalva, contra o arquirrival – àquela altura, um verdadeiro zumbi vagando pelo torneio em busca do repouso final.
Pois estava escrito: este “Ba-guá”, 406º confronto entre ambos, certamente ocuparia lugar na história de Bagé. O Guarany precisava da vitória para tentar sua classificação à fase seguinte. O Grêmio Bagé entrava em campo em busca da honra perdida numa campanha desastrosa.
Estádio lotado. Jogo tenso. Alvirrubros no ataque. E o goleiro jalde-negro pegando tudo. De repente, um ataque do Grêmio...e Jabá fez um a zero. No início do 2º tempo, o Guarany empatou. Mas quem pôs o Grêmio novamente em vantagem? Jabá. Ele, que amargou o banco de reservas ao longo do campeonato. Ali estava a sua chance. E a aproveitava da melhor forma possível.
Aos 36 minutos, novo empate do Guarany. O jogo se encaminhava para o final. Era o adeus dos alvirrubros à classificação, mas poderia significar a permanência na segundona. Porém, o futebol tem sempre um “porém”. Nos acréscimos, um contra-ataque do Grêmio. A bola sobrou para Jabá, que tocou no canto. A bola resvalou no pé do zagueiro e se aninhou na rede. Jabá, o herói da partida. O anjo vingador. Agitando a camisa suada como estandarte, ameaçou dar a volta olímpica, mas foi aconselhado a seguir para o vestiário.
Festa mesmo aconteceu na Avenida Sete, principal da cidade, com direito a buzinaços e bandeiraços. Naquela noite jalde-negra, 14 de abril de 2011,“revival” de 1925, comemorou-se o rebaixamento do rival, a primeira vitória no torneio e, talvez, o entrosamento tardio dos jogadores cariocas, que ainda levaram o Grêmio a mais uma vitória no jogo seguinte.
O resultado desastroso para o futebol bageense pode ser encarado como “o mal que veio para o bem”. Afinal, estão garantidos mais dois Ba-guás em 2012. Na 3ª divisão do estadual gaúcho. Que, como diz Ivete Sangalo, “é lenha”. Ou: mais amargo que tomar chimarrão feito com boldo do Chile.
Pois é, caro leitor. Rivalidade é rivalidade. Nem que a disputa aconteça no paralelepípedo, com bola de meia ou tampinha de refrigerante. Romantismo é bem isso, é o que fica na memória do torcedor e o que falta nesses tempos extremamente profissionais do futebol brasileiro.

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