quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O fígado (em três partes)

O fígado - parte I

Passei dias à espera de um bom gancho para poder comentar algo sobre a construção da Usina de Belo Monte. Ou melhor, sobre o vídeo de celebridades globais engajadas na luta contra a instalação de uma hidrelétrica no Alto Xingu, parte de uma campanha maior do Movimento Gota D’água.
Entenda, o fígado trabalhou muito durante todo o mês de novembro. Absorveu com dificuldade o absurdo movimento de oposicionistas nas redes sociais para tentar levar Lula a um tratamento no SUS, motivados – vejam só o nível da crueldade – por um câncer na laringe do ex-presidente.
Resistiu bravamente ao chamamento à violência praticado pela mesma tropa virtual, engrossada por estudantes de nível superior da rede de ensino particular e professores universitários contra os estudantes da USP, por ocasião da evacuação da Reitoria.
E quando surgiu o vídeo global, ele (o fígado) me pediu a caneta emprestada, pronto para cometer desaforos em mal-traçadas linhas, que, de imediato, me daria o trabalho de digitá-las. “Bando de Solineuzas”, ouvi do fundo do meu âmago, em referência ao papel que consagrou a atriz Dira Paes na série “A Diarista”.
Solineuza, vocês devem lembrar, era aquela moça ingênua, iletrada, cuja graça era a dificuldade de entender obviedades gritantes. E Dira não só fez parte do coro contra Belo Monte como deu entrevistas desqualificando a ampliação da oferta de energia elétrica: “é preciso melhorar a saúde e a educação, e não fazer hidrelétricas”, afirmou.
Tocado por estas palavras, o órgão vital fez chegar aos meus ouvidos um de seus comentários...ácidos: pois é, fazer cinema de qualidade duvidosa com financiamento público pode, né? Quantas creches não seriam construídas com esse dinheiro!
Portanto, como vocês podem observar, escrever com o fígado é algo que se deve evitar sempre, assim como beber em demasia ou ficar conectado demais nas redes sociais. Recomendo cautela em todos os casos.

O fígado – parte II

Talvez inspirado pela conquista do Campeonato Brasileiro pelo meu clube do coração, pensei em várias máximas do futebol para rebater, por analogia, os argumentos pretensamente ecológicos utilizados por uma parte do elenco da Rede Globo num vídeo que se propõe a parar a construção da usina de Belo Monte.
Bastaram alguns acontecimentos novos neste Brasil querido e - pimba! - veio a frase: treino é treino, jogo é jogo. Expressão aparentemente banal, mas que pode ser exemplo para mostrar o tanto de distância que há entre a ficção e a realidade. Ou entre o rascunho e o texto publicado. Ou a roupa apenas alinhavada e aquela costurada definitivamente.
Pois bem. Enquanto o elenco global treinava a sua cidadania no vídeo contra a hidrelétrica; rascunhava sua ideologia; alinhavava todos os argumentos em favor das comunidades indígenas e da preservação da fauna e da flora da região Norte, o jogo começava de verdade em outros cantos do País.
Um jogo bruto, em campos do Mato Grosso do Sul, praticado por jagunços na disputa por terras ocupadas pelos índios guaranis kaiowás. Ataques traiçoeiros, mortes a sangue frio e muitas ameaças aos sobreviventes da chacina.
Quilômetros à frente, outra pincelada de realidade: o jogo sujo, do vazamento de petróleo na bacia de Campos praticado pela Chevron, que conseguiu esconder o fato por cerca de dez dias. A mancha esteve (ou está) perto de chegar a praias do litoral carioca e paulista.
O vídeoshow fala da ameaça de extinção dos índios. Dos riscos a um santuário ambiental. E, a respeito daquilo que pode ser a solução para os males da escassez de energia, nossos rebeldes sem causa (e sem sutiã) pintam um quadro mais que tenebroso, envolto em perigos que não só não existem, como estão impedidos de acontecer por força de decretos e regulamentações. Usam apenas tintas de meio-tons e meias-verdades.
Como dizia o agente Mulder da série Arquivo X, a verdade está lá fora. Longe, bem longe do mundo encantado dos nossos globais e do paraíso ecológico dos ecochucros, que não enxergam um centímetro além do caule de uma planta.
Meu fígado ainda aguarda esperançoso algum vídeo mais contundente, com atores da Globo, que não seja o tradicional clipe de natal e ano novo. Talvez, com Juliana Paes falando tupi e arrancando um colete a prova de balas enquanto espera uma solução definitiva a favor dos índios no acampamento Tekoha Guaiviry, no município de Amambaí, Mato Grosso do Sul.
Ou então Maitê Proença, vestida de pequena sereia, agitando as barbatanas sujas de petróleo, dizendo que vai pesquisar mais sobre as agressões ambientais praticadas pela Chevron em vários lugares do mundo.

O fígado parte - III

Dois tsunamis. Um que começou o ano, outro para terminá-lo. O primeiro, bem real, do outro lado do mundo. O segundo, metafórico, por estas bandas. Mas afinal, o leitor se perguntará: qual a relação entre ambos?
Explico: no Japão, além de fazer milhares de vítimas, as “águas de março” não só inutilizaram uma usina nuclear como fizeram renascer os riscos que essa matriz energética oferece quando entra em colapso. “Nosso reino por um rio caudaloso”, devem ter bradado cientistas japoneses diante da catástrofe, cientes de que a natureza foi pouco generosa com o império do sol, em se tratando de hidrografia.
No Brasil, foi justamente um rio caudaloso que provocou um tsunami de meias-verdades. Todas já rebatidas com eficiência técnica, por ocasião do uso do Xingu como fonte de energia elétrica, consagrando a nossa principal matriz energética.
O que seria algo para causar inveja em países que dependem da fissão nuclear e da queima de carvão para produzir energia, a construção de hidrelétricas passou por questionamentos ambientais e sociais, colocando num mesmo vídeo, nas palavras de celebridades globais, a preocupação com territórios indígenas, expulsão de ribeirinhos, modificação da flora e devastação da fauna.
Argumentos ditos sem a profundidade necessária, que acabaram se transformando num “samba do ecologista doido”, onde o importante é a rima, mais que o conteúdo da canção.
Ora bolas. Afinal de contas, os ribeirinhos sairão das suas palafitas e receberão casas de alvenaria. Terão investimentos em infra-estrutura, também ao alcance dos índios, que não perderão um centímetro de terra. O lago a ser formado terá dimensão ínfima, praticamente a mesma área alagada em época de cheias.
O meio-ambiente não sofrerá agressão significativa. Talvez turbinas, casas de máquinas e barragens destoem um pouco da paisagem. E só. O bloco de energia produzida será imenso e renovável, impensável para eólicas ou solares. Custo baixo dos megawatts gerados. Cerca de 70% comprometidos com os lares brasileiros, sobrando pouco para a indústria pesada, eletro-intensiva.
O mais importante de tudo é que o rol de exigências está sacramentado em edital. Sob os olhares severos da opinião pública. Da mídia. Dos três poderes. Dos ribeirinhos e dos indígenas. Dos artistas da Rede Globo.
Pois, se não houver certos controles, aí sim, pode haver devastação. Há exemplos em muitas margens de rios, à beira de muitos reservatórios. Aqui em São Paulo, região metropolitana, bem do ladinho de milhares de casas, o Tietê e seus afluentes como fonte energética são os maiores exemplos de como a engenhosidade humana, aliada à ganância, podem comprometer irremediavelmente o meio-ambiente.
Maus exemplos, sem dúvida. Há mais de cem anos, um grupo de canadenses resolveu investir no Brasil, no ramo de serviços públicos. Foi fundada a Light, que passou a produzir e vender energia elétrica numa época em que não existiam ONGs e relatórios de impactos ambientais. Apenas capitalismo selvagem. De início, ela operou com a queima de carvão na região da Luz. Depois, com o Tietê já retificado, construiu a primeira usina nas proximidades de Santana de Parnaíba.
Mas o grande lance de engenharia viria anos depois. O Rio Pinheiros, afluente do Tietê também foi retificado. Mais do que isso, teve o fluxo de água invertido. Em vez de correr para o rio maior, tomou a direção da serra do Mar, graças a usinas elevatórias e poderoso bombeamento.
Boa parte da região sul da capital foi alagada, formando uma enorme represa: Billings, em homenagem a um dos mentores da obra. No alto da Serra, a água represada iniciava a “viagem” por adutoras até o nível do mar. Já em Cubatão, a força mecânica da queda d’água fazia girar as turbinas da Usina Henry Borden, produzindo energia em alta escala, transmitida para a CSN, siderúrgica instalada em Volta Redonda (o polvo canadense também operava no Rio de Janeiro).
Genial, não acham? Mas o que sobrou de tudo isso? Uma herança maldita. Atualmente, a Usina Henry Borden quase não gera energia, pois o bombeamento do Pinheiros para a Billings está proibido, enquanto ainda houver poluição em suas águas. Este rio hoje é um esgoto a céu aberto, um canal, que faz do entorno uma área sujeita a alagamentos. Como também o Tietê, apesar das comportas instaladas na altura de Osasco para fazer o controle de cheias. A EMAE, uma empresa originada a partir da antiga Light, existe praticamente apenas para controlar o volume de água que corre na antiga estrutura, em época de chuvas intensas.
Enfim, é uma história que merece ser contada com mais detalhes, noutra ocasião. Talvez em documentário, com depoimentos sérios, sem frases tolas. Certamente não seria impedimento para a construção de Belo Monte ou Girau, mas ficaria como informação para a sociedade.
Como sabemos, editais e outros documentos podem sempre ser modificados, sob um argumento qualquer. O que vale para determinada época, pode não valer para outras. E, nessas horas, deveríamos ser mais escoteiros e menos artistas. E ficar sempre alertas.


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