Em
1973, um dos discos mais raros e mais caros do mundo chamava-se Lotus, do
guitarrista Carlos Santana. Álbum triplo, foi gravado ao vivo no Japão com os
recursos mais modernos da época. Era quadrifônico (quatro canais) que prometia
por no chinelo o som estéreo, até então algo relativamente recente, presente em
qualquer vitrola portátil, uma grande novidade!
O
LP foi um divisor de águas na carreira de Santana. A partir do show do Japão, ele mergulhou
de cabeça no esoterismo e no jazz-rock. A pedido do guru Sri Chinmoy, adotou “Devadip”
como prenome.
Em sua fase mística, Devadip também andou de namoro com a Mahavishnu Orchestra e gravou um disco com John Mclaughlin; em outro LP, homenageou o saxofonista John Coltrane, falecido nos anos 60,
cuja carreira tomou um rumo “transcendental” após usar muito LSD. Dizem que o
espírito de Coltrane participou das gravações – os chiados entre uma faixa e
outra seriam feitos por ele, amassando papel celofane - mas nada ficou
comprovado.
Tais
discos chegaram a ser lançados no Brasil, mas Lotus permanecia inédito. Seria
uma lenda não fossem os poucos exemplares à venda, vindos de contrabando, que podiam
custar o equivalente a uma moto 125 cc, nova. Se eram caros para os
endinheirados, imagine para este rapaz, latino-americano, sem dinheiro no banco,
sem parentes importantes, que mal conseguia comprar um LP usado do Belchior.
Pois
bem. No início dos anos 80, arrumei emprego. Bom emprego, pois era o único que
eu tinha à mão. E numa das rondas rotineiras aos sebos e lojas de disco da região central da cidade, deparei-me com um LP de capa preta brilhante, um figura mística no centro
e, nos quatro cantos do quadrilátero, o nome da obra: “Santana Lotus”. Lançamento
brasileiro, exclusividade do Museu do Disco, edição mais econômica do que a americana
(o som não era quadrifônico).
Não
sei precisar valores, mas a sua compra me custaria os “olhos da cara”. Talvez o preço de uma troca de óleo de uma
Lotus (o carro, não o disco). E, certamente, teria de encarar uma rotina de
sacrifícios por um bom período.
Vamos
lá: reduziria minha idas às casas de suco da rua 24 de maio e arredores;
abriria mão do sundae de morango do recém-inaugurado McDonalds; passaria longe
da rua Conselheiro Crispiniano em busca de ofertas para filmes super-8; postergaria
a aquisição de calças jeans na loja Peter; iria ao Mappin apenas para visitar a
seção de saldos, na rua Xavier de Toledo.
Até
os pedaços de pizza da Leiteria Americana entrariam na dança: apenas um por
mês, enquanto durasse o sufoco. E, claro, ficaria sem comprar discos por um bom
período, para me refazer do impacto da aquisição em meu saldo bancário.
Finalmente,
numa bela tarde, encarei o vendedor pedante, dei-lhe umas aulas sobre a vida de
Carlos Santana (você sabia que ele adotou “Devadip” como prenome...) e fiz a única
compra da vida no Museu do Disco, lugar de raridades, mas que não fazia caridades
aos pobres roqueiros.
Passados
39 anos de sua gravação, o LP se mantém atual, pois é uma síntese da carreira
de Carlos Santana, sob a influência do jazz. Boa parte do que tocou no Japão
continua entrando no script dos seus shows mais recentes. Para ouvir Lotus
hoje, basta baixar o MP3 em alguma rede de troca de arquivos P2P ou torrent. Mas
já vou avisando: nunca terá a mesma graça da era do vinil.
O
meu exemplar eu guardo até hoje, como um troféu. Não dou e não empresto,
portanto será impossível copiá-lo em fita cassete. É o vinil da minha vida,
por tudo o que passei para bancá-lo. O LP ainda tem um bom valor: em bom
estado, custa cem paus no site do mercado livre, equivalente a uma troca de
óleo num fusca 74. Cotação de hoje. Pois fica a dica. Se quiser, o caminho é o mercado livre, hein? Já disse. O meu, não empresto!
Muito bom esse texto Zé, sobretudo, nessa linha do chá batido com limão, vendido nos arredores do Largo do Paissandú. Lembra os verdadeiros, bons e esquecidos cronistas. Abrs.
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